Beltrame: o homem que mudou a segurança no Rio de Janeiro

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Um detalhado retrato de José Mariano Beltrame em seu tempo à frente da segurança do estado do Rio de Janeiro e como sua política de segurança nova está mudando a vida de milhões de pessoas, em matéria da Revista Época (para assinantes aqui).

 

O homem que enfrenta os facínoras

Xerife com fama de incorruptível, pacificador das favelas e ídolo popular, o gaúcho José Mariano Beltrame conquistou o Rio de Janeiro. Algo pode ameaçá-lo?

RUTH DE AQUINO

Por um triz o Estado do Rio de Janeiro não perdeu o secretário de Segurança mais pop de sua história em março de 2007, menos de três meses depois de ele ter assumido. No gabinete sóbrio com paredes de jacarandá no prédio da Central do Brasil, no centro do Rio, José Mariano Beltrame reuniu seus subsecretários numa manhã calorenta. Abaixo do relógio imponente de parede que herdou do bisavô italiano, com a inseparável cuia de chimarrão na mão, ele lançou a bomba sem alterar o tom de voz:

– Vou sair hoje. Estou pedindo exoneração.

Seu principal problema, naqueles tempos, era o secretário de Planejamento do Estado, Sérgio Ruy Barbosa, que sorria, prometia ajuda, mas o enrolava. A equipe arregalou os olhos, tentou dissuadi-lo. Beltrame parecia decidido:

– Não pedi para ser secretário. Falta apoio, não sou homem de aturar o que não quero. A imprensa está batendo muito. Não sou político, sou técnico.

Assessores levaram Beltrame aos janelões do prédio da Secretaria de Segurança. Apontaram o caos urbano lá embaixo. Trabalhadores, camelôs, mendigos, crianças abandonadas. “Mariano”, disse um deles – todos o chamam de Mariano –, “você assumiu um compromisso com essa gente. O Rio tem solução. Nós podemos começar a mudar tudo.”
Beltrame ficou de pensar. Pensou. E ficou.

Dos sete assessores que viram a cena, só dois subsecretários continuam na equipe. De lá para cá, o gaúcho de Santa Maria tornou-se, nas palavras de amigos e desafetos, um “monstro de popularidade”, blindado pelo governo do Estado e pela sociedade civil. É visto como um herói de faroeste, íntegro e destemido como Gary Cooper, o delegado de Matar ou morrer. Outro bangue-bangue, O homem que matou o facínora, com James Stewart, celebrizou a frase: “Quando a lenda é mais interessante que a realidade, imprima-se a lenda”. E a lenda Beltrame, hoje, supera seus resultados concretos. Sua gestão da segurança no Rio se beneficia da comparação com o passado. Governos anteriores não incomodavam o tráfico e as milícias. Limitavam-se a ações espetaculosas, como a prisão eventual de chefões do tráfico e a apreensão de armas e munição, enfileiradas nas delegacias como instalações de arte. O Rio abandonara as favelas ao comando de criminosos com e sem farda, que ganhavam força política e controlavam não só territórios, mas serviços como distribuição de gás e transporte em vans. As favelas se empilhavam em áreas de risco ambiental.

mensagem4 (Foto: reprodução)

Isso tudo ainda existe. Mas hoje há um plano de ocupação das favelas, com metas, treinamento, tecnologia e infraestrutura. Montado numa sigla mágica de três letras – UPP, ou Unidade de Polícia Pacificadora –, Beltrame conquistou a população do Rio. Instaladas até agora em 17 complexos de favelas, reocupadas por forças da lei, as UPPs devolveram o território a 64 comunidades e a 300 mil moradores que viviam sob o jugo de tribunais sumários, metralhadoras e fuzis e dependiam de traficantes e milicianos para ir e vir. Ninguém do asfalto entrava sem acordo prévio com os donos dos morros. Com a nova política de segurança, os indicadores de violência caíram, de acordo com os dados oficiais: homicídios, balas perdidas, autos de resistência, assaltos a pedestres, roubos de carros (leia o quadro abaixo). O Rio ganhou esperança e autoestima. O plano, até 2014, é beneficiar 1,5 milhão de moradores e pacificar 40 complexos de favelas, ao todo 165 comunidades. Ainda é pouco, diante das 1.000 favelas do Estado. Mas o crédito é de Beltrame. “Até agora, não fiz nada de mais, nada que já não tivesse sido pensado”, diz ele. “O que faltava antes era só vergonha na cara.”

O que explica a idolatria ao secretário de Segurança num Estado que, nos últimos três meses, enfrentou episódios de violência em ruas despoliciadas e favelas pacificadas, erros de investigação e protocolo, desvios de conduta de policiais e ações de grupos de extermínio da Polícia Militar (PM)? É a mistura de suas vitórias concretas – ainda que parciais – à credibilidade pessoal. Por mais que a banda podre da Polícia Militar esteja envolvida em desvios, corrupção e homicídios, por mais que a Polícia Civil falhe em suas investigações, nada respinga no cara. Ele é aplaudido em churrascaria, em teatro, em show de Roberto Carlos. Fechado, formal, nunca quis ser uma celebridade e não abre seu apartamento para ninguém. Com jeitão de xerife e uma sinceridade cortante como os ventos de sua terra natal, costuma descontrair o ambiente com provérbios populares recheados de palavras chulas. “Passarinho que come pedra sabe o c… que tem”, diz sobre quem precisa arcar com seus atos.

Antes de ser secretário, o delegado Beltrame preferia as sombras, a investigação em missões secretas contra o narcotráfico. Era uma vida quieta e tão espartana que o levou a morar sozinho durante 17 meses, entre 2003 e 2005, no alojamento cinzento da Polícia Federal, na Praça Mauá, no centro do Rio, onde nenhuma mulher entrava. Até que apareceu a Rita com o sorriso dela, seu amor. Ela é uma morena alta, de 44 anos, ex-professora de educação física. Eles se conheceram numa quadra de escola de samba, o Salgueiro, em 2004. Ela vascaína, ele torcedor do Internacional. Era separado, livre e anônimo. Estão juntos até hoje. Ambos católicos devotos, foram recentemente ao santuário de Nossa Senhora Aparecida, em São Paulo, só com motorista. Não perdem uma missa semanal. Em Ipanema ou na Gávea.

Tentam viver quase normalmente, andam de mãos dadas, alheios ao hexágono de guarda-costas. “Sabemos que não somos donos de nosso destino há cinco anos”, diz Rita. Beltrame usa uma escolta de nove seguranças. Diz que são apenas quatro. Não quer chamar a atenção para as 17 ameaças de morte contra ele. Quando a juíza que investigava PMs homicidas foi fuzilada em seu carro, em agosto, chegando em casa em São Gonçalo, Beltrame ficou calado um bom tempo. Parentes e amigos telefonaram, preocupados com sua vida e a de seus próximos. Aos 54 anos, com dois filhos adultos do primeiro casamento e um bebê, o Chicão, de 1 ano e meio, filho com a Rita, ele diz não ter medo de morrer. “Tenho zero medo. Sabe por quê? Nunca sacaneei ninguém.” Não é essa a visão dos destituídos por ele nas duas polícias. O sentimento de traição é forte. “Mariano vai minando as pessoas em volta e depois entrega às feras”, diz um deles.

No dia 27 de setembro, uma terça-feira, ele estava em casa, lendo o romance histórico Queda de gigantes, de Ken Follett, sobre a Primeira Guerra Mundial, quando soube por sua chefe da Polícia Civil quem era acusado de ordenar o brutal assassinato da juíza Patricia Acioli: o comandante do 7º Batalhão de São Gonçalo, o tenente-coronel Cláudio Luiz de Oliveira, premiado pelo Estado por reduzir mortes e assaltos em sua região. O fiador de Cláudio Luiz era o então comandante-geral da PM, coronel Mário Sérgio Duarte, seu colaborador mais próximo na política de pacificação, homem-chave na ocupação do Complexo do Alemão no ano passado. Na cama do hospital, recém-operado da próstata, Duarte escreveu, na presença de Beltrame, uma mensagem em seu celular, assumindo seu fracasso como gestor e pedindo para sair. Beltrame ficou abatido. Mas nomeou logo outro comandante-geral, mandou trocar comandos de batalhões e anunciou que passará a investigar o patrimônio de policiais suspeitos de corrupção. “Fiquei cinco noites sem dormir”, diz Beltrame. “Nada mais me surpreende neste trabalho.”

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“CAVEIRA” A HERÓI

Beltrame jamais sonhou em ser secretário de Segurança. Quando, em novembro de 2006, tocou o telefone na casa da família no Rio Grande do Sul, e ele ouviu do governador eleito, Sérgio Cabral, o convite para o cargo, ficou surpreso. Ele não levava jeito para gestor e não gostava de se expor. Formado em administração e Direito, fora chefe da Interpol e trabalhara para a Polícia Federal por 27 anos. “Mariano foi surpreendido pelo convite”, diz a irmã mais velha, a diplomata Ana Lélia, cônsul na Guiana Francesa. “Era um cargo de gerência, e ele sempre teve um cérebro mais talhado para detetive, desde pequeno se metia a deduzir e adivinhar.”

Um dos atrativos do cargo espinhoso era a remuneração, acima do teto estabelecido na Constituição Federal, que adota como referência o salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Hoje, um juiz do STF ganha RS 26.700. Beltrame ganha R$ 37.247,18 por mês, segundo consta na ação popular aberta pelo advogado Carlos Azeredo. A ação foi inspirada em denúncia do ex-governador Anthony Garotinho. A explicação para o salário alto é, segundo a Secretaria Estadual de Planejamento, “a política do governo do Estado de qualificação de seus quadros”. Para atrair talentos – como Beltrame – com salários competitivos, o governo usa um expediente previsto em lei estadual do governo Rosinha: aos servidores cedidos pela União, é permitido acumular duas fontes pagadoras autônomas. Mas tudo é pago pelo Estado do Rio.

Pouco depois de aceitar o convite, Beltrame percebeu como sua vida mudara. Ao sair à rua para o primeiro encontro com a imprensa, em dezembro de 2006, uma turba de repórteres e fotógrafos se jogou em sua direção. Beltrame saiu correndo em fuga. Seu então estrategista de Comunicação, Dirceu Vianna, o agarrou firme pelo paletó. “Mas não tenho nada para falar”, dizia Beltrame. Mal comparando, diz Dirceu, era como se, na queda do comunismo soviético, o novo governo tivesse chamado o chefe soturno da KGB para ser o porta-voz da segurança. Era essa a imagem de Beltrame: um “caveira”, um representante da turma que entra para reprimir e matar. Seu discurso era o do confronto.

Às vésperas do Réveillon de 2006, bandidos receberam ordens das cadeias do Rio para lançar ataques coordenados na cidade. O saldo foi de 18 mortos, entre eles sete traficantes. Em fevereiro de 2007, o menino João Hélio, de 6 anos, foi arrastado por bandidos pelas ruas, preso pelo cinto de segurança à porta aberta de um carro roubado. Beltrame chorou no enterro. “Sendo sincero”, diz Roberto Sá, subsecretário de Integração Operacional, “entramos naquele caldeirão primeiro para tentar resgatar a autoridade e a estima da polícia. Mostrar que o banditismo, o crime não podiam ter aquela audácia. A gente se preocupava com viatura, farda, quartel, comunicação, melhores condições de tecnologia. Os primeiros dois anos foram consumidos por esse trabalho.”

O Beltrame de 2007 era outro. Seus homens invadiram o Complexo do Alemão, um conjunto de 13 favelas erguido sobre a Serra da Misericórdia, na Zona Norte, numa megaoperação que terminou em massacre, com 19 mortos. Especialistas em direitos humanos condenaram o ataque. Grande parte da população aplaudiu – os aplausos refletiam o ódio aos bandidos que haviam sitiado a cidade. Quem comandou a ação no Alemão, fumando um charuto, foi o inspetor Leonardo da Silva Torres, o Trovão, hoje preso por vender pistolas, metralhadoras e fuzis a traficantes. Beltrame não se arrepende: “Havia no Alemão, naquele momento, bandidos que queimaram pessoas vivas dentro de um ônibus na Avenida Brasil. Queriam nos intimidar, porque eu removi os presos para presídios federais de alta segurança. Não podia permitir que seis pessoas causassem terror e pânico em 6 milhões. Tínhamos a informação de que eles tinham mais de 15 mil cartuchos de fuzil 762. O Rio estava a três meses dos Jogos Pan-Americanos. Não dava para enfiar a cabeça embaixo da mesa”.

Depois do banho de sangue no Alemão, a filosofia do confronto começou a ser questionada. “Era preciso mudar de estratégia, se quiséssemos resultados perenes”, diz Sá. Beltrame mandou a equipe viajar para o exterior, conhecer modelos de policiamento ostensivo, de cidadania, integração entre as polícias, metas com bonificação. Desse movimento, surgiu a ideia da UPP, antes de tudo um movimento de inclusão social. A meta final é ambiciosa, para muitos utópica: o fim da cidade partida. Beltrame tem sido incensado nos últimos dois anos e meio, desde que inaugurou a primeira favela pacificada, Dona Marta, em Botafogo, na Zona Sul do Rio. A “pacificação” está baseada num tripé inicial: a recuperação do território para a comunidade, o fim da ostentação de traficantes com fuzis e metralhadoras e a entrada definitiva de novos policiais, dispostos a ouvir – não a matar. “Instalar uma UPP é como jogar água quente no formigueiro”, diz Beltrame. “Com a perda de território, os comandos dos bandidos sempre se reorganizam para tentar uma reação.”


A PACIFICAÇÃO, PAGA POR EIKE

Pelos méritos da pacificação, duas cristaleiras no gabinete de Beltrame estão abarrotadas de medalhas e troféus do Brasil e do exterior. Ele já ensaiou break com rapazes nas favelas pacificadas e dançou valsa com debutantes do morro. As jovens da Providência, comunidade de 113 anos com uma UPP há um ano e meio, estudaram etiqueta, aprenderam a desfilar de salto alto, receberam bolsas para cursos de extensão universitária. Pareciam princesas na festa conjunta de 15 anos no fim de agosto, no Museu Histórico Nacional. Um grupo fez trenzinho e levou Beltrame para o meio do salão. As homenagens que mais o emocionam vêm de gente simples. “Engulo em seco com presentes das crianças que deixam por escrito: ‘Graças a você, tio, eu agora posso brincar na rua’.” Quando o garçom Gyleno, de 73 anos, abraçou-o, na sala de almoço da prefeitura, logo após a ocupação militar do Complexo do Alemão, grato por sair pela primeira vez de casa sem medo, no bairro de Del Castilho, na Zona Norte, o gauchão chorou.

Sugando o chimarrão, no carro preto que nos conduz pelas ladeiras do Borel, na Tijuca, com uma UPP instalada, ele avisa, com o sotaque cantado e a concordância peculiar do Sul:

– Tu vai ver, não está nenhuma maravilha. Não tem jogo ganho. Sem educação, crédito e perspectivas, pode ser uma catástrofe. Este rapaz aqui (aponta o policial pacificador) não vai cuidar do lixo, da iluminação, dos cabos telefônicos, não vai oferecer a NET a preços populares, não é este rapaz que vai segurar o pessoal com fome e sem emprego.

Beltrame cobra mais rapidez e menos burocracia nas obras e investimentos sociais nas favelas: serviços de água, esgoto, lixo, saúde, educação, microcrédito. Cobra do Estado, da prefeitura, das empresas, da iniciativa privada. E o compromisso anunciado, em agosto do ano passado, entre o governo e sete grandes empresários, que previa a criação de um fundo para financiar obras de infraestrutura nas áreas reocupadas? “Só o Eike Batista honrou esse acordo”, diz Beltrame. “Ele contribui com R$ 20 milhões por ano até 2014. Queria que houvesse um fundo de empresários, gerido por eles, para suprir as deficiências nas comunidades.” Passamos no Borel por uma quitanda que inaugurava o primeiro caixa eletrônico bancário 24 horas. A sede azul e branca da UPP exibia carros reluzentes. “Viu as caminhonetes?”, diz Beltrame. “Todas compradas com a ajuda do Eike. As motos para coleta de lixo, também.”

Um estudo da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro revelou uma das grandes fraturas da pacificação. Como a primeira favela pacificada, Dona Marta, convive até hoje, num lado do morro, com esgotos a céu aberto, lixo e ratos? E não é só a falta de infraestrutura social que preocupa. Nem todos os jovens PMs recém-formados na Academia estão imunes à corrupção. Foram afastados no mês passado 30 oficiais de UPPs nos morros da Coroa, Fallet e Fogueteiro, em Santa Teresa, alguns suspeitos de receber até R$ 53 mil do mensalão do tráfico. Uma policial militar de UPP foi presa no início deste mês pelo Batalhão de Operações Especiais (Bope) com documentos falsificados e dois revólveres com numeração raspada. “Vamos passar a supervisionar os policiais de UPP a cada seis meses”, diz Beltrame, “e criar um banco de talentos.”

Embora Beltrame tenha, nas palavras do antropólogo Rubem César Fernandes, do Viva Rio, “se apropriado do discurso da esquerda dos direitos humanos”, seu auge de popularidade foi atingido, ironicamente, com a operação de guerra na Vila Cruzeiro, ao lado do Morro do Alemão, em novembro passado, acompanhada pela televisão ao vivo. Com blindados das Forças Armadas, a ação inédita foi uma demonstração de poder contra chefões do Comando Vermelho, que ordenavam ataques no Rio a partir do presídio de Catanduvas, no Paraná. A ocupação do Alemão pelo Exército terminaria no dia 31 de outubro, mas foi prorrogada. Por enquanto, os traficantes continuam num vaivém entre a Vila Cruzeiro e o Alemão. Só em março de 2012 a UPP entrará, com 2.200 homens.

Logo depois da ocupação do Alemão, gente que se diz ligada a Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, chefe do tráfico na Rocinha, foi à Secretaria de Segurança. “Eu disse e repito: tragam o Nem a nós. Porque uma hora vamos ocupar a Rocinha. Se ele se entregar antes, ótimo. É só marcar hora e local. Vamos integrar essas pessoas à sociedade se quiserem deixar o crime”, diz Beltrame. Há uma fila de comunidades pedindo UPPs. “Vamos subir a Avenida Brasil. Vamos ocupar Maré, Kennedy, Juramento, Coroa, Cerro Corá. Temos de terminar a Mangueira. E Vidigal, Rocinha e outras.”

A relação entre Beltrame e o povo das favelas vai hoje além do profissional. O último Réveillon ele passou com a família na UPP do Morro da Babilônia, no Leme, na Zona Sul. Desenvolveu um zelo protetor pelo projeto e pelas pessoas. Quando o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, veio ao Rio em março, Beltrame recebeu uma ordem: Obama e a família se hospedariam no Sheraton. O hotel, que tem uma praia particular, fica abaixo da Favela do Vidigal. O secretário teria de improvisar uma ocupação-relâmpago do morro para atender o visitante ilustre, mas se negou: “Obama vai ficar três dias no Rio. E, quando ele for embora, o que faço com o Vidigal?”. O presidente americano acabou se hospedando longe dali, na Avenida Atlântica, em Copacabana.

O cineasta Cacá Diegues, que coordenou o documentário 5xUPP, dirigido por moradores das comunidades, considera Beltrame um “pensador iluminista”. “Ele é desses que raciocinam com uma clareza muito grande e não cedem. É coerente e não se afasta 1 milímetro de suas convicções, só aprofunda”, diz Diegues. Beltrame e Diegues foram a Paris apresentar o filme a uma plateia de universitários na Sorbonne, em julho. Beltrame não subiu a Torre Eiffel, não passeou no Rio Sena. Cumpriu sua tarefa e voltou ao Brasil.


EM FORMA Beltrame corre em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio (à esq.). Ele costuma ter a companhia da mulher, Rita (acima), ex-professora de educação física. Católicos devotos, não perdem uma missa semanal  (Foto: André Valentim)

O PAVIO CURTO E A BANDA PODRE

A serenidade de Beltrame é espantosa nos dramas públicos. Internamente, seu pavio é curto. Teve uma briga quase física em julho de 2008 com seu subsecretário-geral, delegado federal Márcio Derenne, demitido por discordar do chefe. Testemunhas apartaram. “Quem explodiu foi ele”, diz Derenne, amigo do governador Sérgio Cabral. “Mariano tem mais idade que eu e tentou bater. Eu era contra a política inicial de enfrentamento com os traficantes. Ele extinguiu meu cargo. Gosta de pessoas que não têm opinião. Não é um cara mau. Só tem a veia gaúcha que não admite discordância.” Um ex-assessor de alto escalão atribui a demissão de Derenne a dossiês sobre autoridades que o subsecretário de Tecnologia, Edval Novaes, então encarregado da Inteligência, teria preparado sem autorização judicial, com quebra de sigilo bancário e fiscal. Derenne teria se insurgido e sido chamado por Beltrame de “traidor”. Derenne não confirma a versão e diz que a divergência com o secretário era ideológica.

Se existe algo que Beltrame detesta, como homem que veio da Inteligência da PF, é estar desinformado. Não admite ruídos na comunicação interna que o deixem vendido. Dentro das polícias Civil e Militar, seus apelidos não o enaltecem. “Sassá Mutema, o ignorante que virou salvador da pátria”, uma referência ao personagem de Lima Duarte na novela. “Forrest Gump, o bobo que deu certo”, uma comparação com o personagem limitado mentalmente de Tom Hanks, viciado em correr. Ex-amigos lembram uma historinha incômoda: “Você sabia que o Mariano, ao fazer concurso para delegado federal em 2004, ficou em 896º lugar e só conseguiu entrar depois de liminares perdidas, repescagens e acordos?”.

Beltrame não é um ídolo das bases. Mexeu em vaidades. Exigiu abertura de dados da Polícia Civil. Começou a punir desvios de conduta. Sua estratégia de ocupação das favelas viola o espírito bélico dos fardados. Onde já se viu avisar aos traficantes que, em tal dia e hora, o Bope vai entrar no morro – e assim permitir a fuga, sem prender nem matar ninguém? De preferência, não dar um só tiro? Hoje, o Rio premia com gratificações extras, em cerimônias, os policiais que matam menos. Foram expulsos 1.046 policiais civis e militares em seis anos. Um ex-assessor de confiança diz que as pessoas “só aprendem a gostar aos poucos do Mariano, ele diz que tem de fazer a cara feia”. Mas mesmo os que se sentem traídos elogiam sua honestidade e integridade. “Engraçado, né?”, diz Beltrame. “Penso que essas duas coisas a gente traz de casa.” Ele esfrega as veias do braço: “Está no sangue o que o pai me ensinou. Em casa no Sul, nós sentava (sic) para fazer o dever com lápis e borrachinha. Se o pai perguntava ‘cadê teu lápis’ e eu respondia ‘quebrou’ ou ‘perdi’, ele dizia: ‘Então agora vai esperar aí sentado tua irmã terminar para pegar o lápis emprestado. O que é teu é teu, o que é dela é dela’”.

O maior desafio hoje é interno. “Milícia é um problema interno”, diz Beltrame. “Não é só crime. É desvio de conduta.” O deputado do PSOL Marcelo Freixo, ameaçado de morte pelas milícias, critica Beltrame por não investir mais na ocupação de favelas dominadas por ex-policiais. O ex-secretário de Segurança Pública e sociólogo Luiz Eduardo Soares, autor do livro Elite da tropa, acha que o Rio não resolve seus problemas sem mudar as polícias radicalmente. “Beltrame é otimista”, diz Soares. “Ele acha que pode ir esvaziando a banda podre aos poucos e que isso vai resultar num salto de qualidade. É impraticável.” Os dois se reuniram neste ano em Genebra, a convite da ONU, num grupo fechado para discutir a reforma das polícias na América Latina. Beltrame acredita que pode manter o modelo de duas forças, militar e civil. Soares só vê futuro na refundação gradual das forças da ordem. “O que temos é inadministrável. A PM repete a estrutura do Exército. E aí temos a Polícia Civil, que investiga muito mal. Praças e oficiais, delegados, todos são rivais entre si. A corrupção não é a causa, mas o sintoma desse descontrole”, afirma. É um modelo que, de acordo com ele, induz ao corporativismo. “Há uma metástase no sistema.”

Até hoje, Beltrame nunca foi acusado de ser condescendente com a banda podre. É um de seus maiores trunfos. A partir de 1o de janeiro, os cursos de policiais terão novo currículo, voltado para direitos humanos, sociologia e antropologia. “A ideia é criar uma nova geração de policiais, que entrem na corporação não para matar.” Eles não poderão mais atirar em perseguição a suspeitos nem forjar “autos de resistência” para exterminar inocentes. Só poderão usar arma de fogo em último caso, para não morrer ou proteger outra vida. “Se, hoje, você tira o fuzil de um policial, ele se sente nu”, diz Beltrame. “Não pode ser assim. Um dia será diferente.”


O FUTURO DO XERIFE

É na forma de falar e também de comer, segurando o garfo com a mão inteira, que se enxerga o homem rústico. Seus pratos favoritos, diz dona Cristina, de 62 anos, cozinheira da Secretaria de Segurança, são salada de bacalhau, carne assada com nhoque, feijão-branco com camarão, bife à milanesa. E o pudim de leite condensado com casquinha de limão, especialidade da casa. Beltrame decidiu virar policial para ser independente e escapar dos R$ 10 de semanada que ganhava. “Burro só serve para puxar carroça”, dizia o pai, Victor Beltrame, funcionário do Banco do Brasil. “Vai estudar e trabalhar.” Não tinha moleza em casa. A mãe era professora primária, alfabetizadora. Morreram antes de o filho ficar famoso.

O estresse, o desgaste e a responsabilidade pesam sobre os ombros e forçam a coluna nas vértebras L4 e L5. A dor irradia para a virilha. Apenas recentemente, retomou as corridas – para ele, o esporte mais democrático que existe, pois “basta vestir um calção e sair correndo”. Pela primeira vez depois de dez anos, correu até o fim a meia maratona do Rio, em agosto, com a ajuda da sessão semanal de RPG e a companhia da mulher. O medo que tira seu sono, diz, é “não corresponder à expectativa dos jovens, que querem estudo, emprego e visibilidade”. Não é um discurso político? “É o discurso da minha sensibilidade. Não faço promessas, não digo que vou acabar com o tráfico. Onde houver renda e vício, o comércio de drogas existirá. Só não pode ser armado, aos olhos da polícia.”

Beltrame foi eleito muso gay por uma revista LGBT. “Ele não faz o tipo fofinho, mas antes um secretário de Segurança jamais seria popular. Eram coisas incompatíveis”, diz o estilista Carlos Tufvesson, coordenador da diversidade sexual da prefeitura. Beltrame desconstrói a imagem caricata de macho dos pampas ao abraçar o programa Rio sem Homofobia. Deu um andar inteiro da Secretaria ao pessoal do arco-íris e fez questão de ir ao casamento de seu assessor Cláudio Nascimento, criador da primeira parada do orgulho gay em Copacabana. A popularidade do secretário leva partidos a sonhar com sua filiação. Jorge Picciani, presidente do PMDB no Rio, se antecipou. “Estendo o tapete vermelho a ele para se candidatar ao que quiser. Há no país o reconhecimento de que o Rio mudou. E a mudança pode ser creditada em grande parte ao doutor Beltrame”, diz Picciani.

“Essa história de eu ser deputado, prefeito ou governador é só fofoca para me intrigar”, afirma Beltrame. “Claro que em tudo é preciso flexibilizar. Mas, na política, se flexibiliza demais.” Sua mulher, Rita, vai além: “Seria difícil para o Mariano fazer conchavos. Eu ia ter em casa um homem depressivo, angustiado”. E se saísse para cuidar da segurança nacional e tentar coibir, nas fronteiras, a entrada de armas e drogas? “Aí sim. Esse é um enorme desafio”, diz. “Tem muito mais a ver com meu perfil.” O Brasil, segundo Beltrame, precisa distribuir em pontos da fronteira centros de Inteligência com policiais civis, federais e militares. “A experiência que tenho é da Missão Suporte, da PF. Deveríamos replicar ‘missões suporte’ em Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul.”

Dos 15.719 quilômetros de fronteiras, 11.000 ligam o Brasil aos três maiores produtores de cocaína do mundo: Peru, Bolívia e Colômbia. “Precisamos ter policiais lá, e eles têm de ter policiais aqui. Hoje sabemos que o Polegar (ex-chefe do tráfico do Morro da Mangueira, foragido do Brasil) está no Paraguai. Quem está com essa investigação?” E, quando ele apear do cargo, a integração de asfalto e morro, promovida pelas UPPs, corre o risco de desabar? “Já descobriram que ser honesto dá voto”, diz. “Ninguém vai ser louco de acabar com as UPPs. Esse projeto não é meu mais, nem do governo. É da sociedade, e ela não vai deixar que acabe.”



A VEIA GAÚCHA Beltrame suga o chimarrão em reunião com os subsecretários Hélio Pacheco Leão (à esq.) e Edval Novaes (à dir.)  (Foto: André Valentim)

VICIADO EM ERVA

“O pessoal do Sul me liga e diz: ‘Vou te levar a erva. Tá fresquinha, novinha’. Aí, eu digo a eles: ‘Ó, é erva-mate para eu tomar chimarrão. Não fala só erva no telefone’.” É quando se refere ao vício do chimarrão e ao risco de ser grampeado que Beltrame revela sua paixão como policial: a informação inteira, com começo, meio e fim. “Uma de minhas maiores qualidades é escutar muito”, diz. “O Mariano escuta de maneira não convencional muitas conversas ao telefone, na ânsia de investigar tudo”, afirma um colaborador destituído.


SIMPLICIDADE Na cozinha da Secretaria, Beltrame beija dona Cristina. Ela faz seus pratos favoritos: carne assada com nhoque e pudim de leite condensado  (Foto: André Valentim)

O DETETIVE DA LANCHONETE

“Seis quibes”, disse Mariano. Ele tinha 12 anos. Estava com os irmãos numa lanchonete de Santa Maria, quando entrou um senhor gordinho, que consumiu seis quibes no balcão. Como descobriu, Mariano? “Vi o cara entrar com pressa sem olhar para ninguém. Estava obviamente com fome. Vi a dona sair da cozinha com um tabuleiro de quibes fresquinhos. Deduzi que ele comeria seis, porque até gordo tem vergonha de comer mais que meia dúzia de salgados na frente de todo mundo.” O homem passou a ser apelidado de Seis Quibes.


NA DANÇA No baile de debutantes do Morro da Providência, realizado em agosto, Beltrame foi disputado como “príncipe” pelas meninas  (Foto: Pedro Farina/ÉPOCA)

CELEBRIDADE, DIA E NOITE

“Posso pedir uma coisa?”, diz a caixa do supermercado ao senhor sério de óculos, lábios finos e olhos verdes, cara de gringo. (“Vai me pedir uma UPP”, pensa ele.) “O senhor me dá um autógrafo?” E ela entrega um papelzinho com a caneta presa à caixa registradora. Desconcertado, Beltrame fica vermelho, quase roxo, até o pescoço. O rubor sempre o traiu. Menino, na sala de aula, miava igual a um gato, mas com a boca fechada. Os colegas riam, o professor se enfezava. A bochecha rubra o denunciava. Acabava na sala do diretor.

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