Como a elite odeia tanto o SUS sem nem conhecê-lo

CANCER NO CARATER

Mais uma vez a elite brasileira – cada vez maior e com mais voz, dado o poder do compartilhamento fácil de opiniões extremadas (e idiotas) nas redes sociais – dá provas de sua gana por se provar melhor que o resto da civilização. É fácil agredir um órgão do tamanho do SUS, esquecendo-se dos milhares de profissionais – entre médicos, enfermeiras, faxineiros – que tentam trabalhar frente a dificuldades quase intransponíveis para tornar a saúde pública do país melhor. O resultado prático á ainda pior, pois apesar de Lula não ser santo (nem perto disso), essa perseguição irracional e a insistência acabam por beatificá-lo ainda mais para seus milhões de adoradores.

Matéria da Revista Época, exclusiva para assinantes aqui.

A maior batalha de Lula

Um câncer na laringe, provavelmente causado pelo cigarro, ameaça a voz do ex-presidente da República. Como Lula enfrenta o tratamento e qual o impacto da doença no jogo político de 2012

CRISTIANE SEGATTO, MARIANA SANCHES E LEANDRO LOYOLA

TRANSPARÊNCIA Lula e Marisa, no Sírio-Libanês, onde gravaram um vídeo para agradecer o apoio recebido. Lula determinou que os médicos não escondessem nada (Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula)TRANSPARÊNCIA
Lula e Marisa, no Sírio-Libanês, onde gravaram um vídeo para agradecer o apoio recebido. Lula determinou que os médicos não escondessem nada (Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula)

Foi no grito que o operário Luiz Inácio Lula da Silva liderou as assembleias e as greves no ABC paulista no fim dos anos 1970 e começo dos 1980. Uma das imagens mais marcantes do período é Lula discursando para uma multidão no Estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, sem microfone. Cada frase sua era repetida pelos mais próximos, depois repassada para a turma de trás, formando uma onda que levava a mensagem até as bordas mais distantes do estádio. Falando e discursando demais, Lula fundou o PT, defendeu as Diretas Já, chegou à Presidência, foi reeleito e construiu uma sucessora. No gogó, encantou plateias selecionadas até se firmar como um fenômeno de popularidade internacional. Para horror dos detratores e orgulho dos fãs, Lula não consegue ficar calado.

Nos próximos meses, Luiz Inácio Lula da Silva deve falar menos. O câncer de laringe diagnosticado no dia 28 de outubro o obrigará a poupar a voz. Lula tem pela frente uma luta árdua para se manter vivo e preservar sua razão de viver. Num vídeo de agradecimento gravado na última terça-feira, pouco antes de deixar o Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, Lula dá mostras da importância que atribui A sua capacidade de mobilizar as pessoas por meio da fala. “Lamento não poder dizer um ‘companheiros e companheiras’ bem forte.” Com a voz cheia de falhas, despede-se assim: “Até a primeira assembleia, o primeiro comício ou o primeiro ato público”. Lula tem consciência de que, na essência, é aí que reside seu maior talento.

COMPANHEIROS Na suíte 1.125 do Sírio-Libanês, Lula recebe a presidente Dilma e o ministro Guido Mantega. Devido à doença, sua atividade política deverá diminuir (Foto: reprodução)COMPANHEIROS
Na suíte 1.125 do Sírio-Libanês, Lula recebe a presidente Dilma e o ministro Guido Mantega. Devido à doença, sua atividade política deverá diminuir (Foto: reprodução)

A voz do ex-presidente Lula, caracteristicamente rouca, não era a mesma havia cinco semanas, quando ele fez uma palestra remunerada para o Banco Santander, em Londres. Na plateia, estava José Camargo, seu amigo e conselheiro do Instituto Lula. Segundo Camargo, a alteração no timbre de voz era perceptível. Cansado e indisposto, em decorrência de problemas estomacais, Lula fez uma opção pouco fiel a seu estilo: leu um discurso ao longo de quase 60 minutos. Não empolgou. Terminado o evento, saiu rapidamente. “Ele estava muito diferente do orador que, meses antes, arrancou aplausos em pé dos funcionários da Telefônica na mesma Londres”, diz Camargo.

Um dia antes da descoberta do tumor, Lula comemorou 66 anos, com uma festa em seu apartamento, em São Bernardo. Ao cardiologista Roberto Kalil Filho, seu amigo e médico há 22, reclamou: “Estou com um pigarro na garganta há uns 40 dias. Só me dão pastilha”.

Kalil disse que ele precisava ir ao Sírio-Libanês no dia seguinte. Fazia um ano e meio que Lula não passava por um check-up. Segundo Kalil, ele respondeu assim: “Não quero fazer exames. Se fizer, vão descobrir que tenho um câncer igual ao do meu irmão”.

Talvez mais que intuição, a desconfiança de Lula baseava-se em probabilidade. Além da mãe, dona Lindu, Lula perdeu os tios maternos e dois irmãos para o câncer. Seu irmão mais velho, Jaime, teve um tumor na laringe semelhante ao que o acomete. Não bastasse o histórico familiar, Lula foi fumante desde a adolescência. “Ele me contou que, nas fases mais duras da vida, quando estava desempregado e morando com a mãe, não tinha dinheiro para comprar cigarro. Então, saía pegando bituca do chão, na rua mesmo, para fumar”, diz a jornalista Denise Paraná, autora da biografia Lula, o filho do Brasil. Lula abandonou sua cigarrilha apenas em janeiro de 2010, depois de uma crise de hipertensão.

Lula teve sorte de descobrir o tumor de 3 centímetros antes que atingisse as cordas vocais. Tecnicamente, é chamado de carcinoma epidermoide e está bem perto delas. Assim que recebeu o diagnóstico, ao lado de sua mulher, Marisa, Lula avisou os filhos e a presidente, Dilma Rousseff. Em seguida, determinou que a assessoria de imprensa do Sírio-Libanês soltasse uma nota sobre o câncer recém-descoberto. Foi pela imprensa que amigos e colaboradores souberam da doença.
Lula será tratado com uma combinação das drogas docetaxel, cisplatina e 5-fluourouracil. É uma quimioterapia pesada, que pode provocar muito cansaço e alterações na voz. Serão três sessões, com intervalo de 21 dias entre elas. “Será uma batalha”, diz Paulo Hoff, diretor do Centro de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês. Ao final da quimioterapia, Lula enfrentará sessões diárias de radioterapia, num período de seis a sete semanas.

Ainda é cedo para saber como seu sistema imune reagirá à quimioterapia – é comum que o tratamento provoque queda de imunidade. Nesses casos, o paciente precisa tomar injeções de fatores de crescimento para normalizar a taxa de glóbulos brancos no sangue. “Vamos ver o tamanho da encrenca na próxima semana”, diz Kalil. Uma das preocupações é a saúde cardíaca de Lula. Duas das drogas que fazem parte da quimioterapia podem ser tóxicas ao coração. A cisplatina pode provocar hipertensão e insuficiência cardíaca. Outra droga, a 5-fluourouracil, aumenta o risco de isquemia (morte das células do músculo cardíaco por falta de oxigênio) e diminuição do calibre dos vasos. “Vamos monitorar o coração atentamente. Ele fez uma tomografia das coronárias, e está tudo bem”, afirma Kalil.

Os médicos acreditam que a quimioterapia e a radioterapia sejam capazes de matar o tumor. Eles avaliam a chance de cura em 80%. Caso a resposta ao tratamento não seja satisfatória, restaria a Lula se submeter a uma cirurgia. Em geral, os pacientes que passam por ela sofrem graves alterações na voz ou chegam a perdê-la.

VÍCIO ANTIGO Lula fumou desde jovem. Na foto da esquerda, ele é o rapaz agachado de camisa escura. Acima, uma imagem de 1987. À direita, em 2003, fuma uma cigarrilha (Foto: arquivo pessoal cedido a Denise Paraná publicada no livro: Lula O filho do Brasil, arquivo/Ag. O Globo e Flávio Florido/Folhapress)VÍCIO ANTIGO
Lula fumou desde jovem. Na foto da esquerda, ele é o rapaz agachado de camisa escura. Acima, uma imagem de 1987. À direita, em 2003, fuma uma cigarrilha (Foto: arquivo pessoal cedido a Denise Paraná publicada no livro: Lula O filho do Brasil, arquivo/Ag. O Globo e Flávio Florido/Folhapress)

Até a descoberta do câncer, o problema de saúde mais grave sofrido por Lula fora uma apendicite aguda, em 1988, quando era deputado federal. Com fortes dores, viajou de Brasília para São Paulo para ser operado às pressas. Na Presidência, sofria de bursite e teve uma crise de pressão alta no final do mandato. Outro problema de saúde mais grave foi de ordem psíquica. Ele entrou em depressão em 1971, quando sua mulher, Maria de Lourdes, e seu primeiro filho morreram no parto. “Lula passou cerca de três anos deprimido, sem vontade de sair de casa, ir a bares, bailes. Dedicava seu tempo apenas ao Sindicato dos Metalúrgicos”, diz Denise Paraná. No histórico de Lula não consta nenhum tipo de indisciplina em relação às orientações médicas.

Um aspecto que tem chamado a atenção no meio político é a transparência com que Lula tem tratado a própria doença. Na tradição brasileira, informações sobre a saúde de políticos são quase sempre manipuladas por interesses eleitorais. É verdade que Lula não está mais no poder e tem afirmado que não será candidato nas próximas eleições, o que lhe dá mais conforto para expor seu prontuário médico. Ainda assim, mesmo os analistas políticos mais ácidos ao estilo falastrão de Lula se curvaram diante da administração que Lula fez da própria crise. O fato foi digno de nota da revista britânica The Economist, que contrapôs a transparência de Lula ao modo obscuro como o venezuelano Hugo Chávez conduziu a divulgação de informações sobre seu câncer de próstata, contra o qual ele ainda luta.

Com ordens para não se afastar do Sírio-Libanês até fevereiro, quando o tratamento deverá acabar, Lula cancelou sua agenda internacional e as viagens que já estavam programadas aos Estados Unidos, à República Dominicana, Índia, Etiópia, Moçambique e Venezuela, onde faria uma visita de solidariedade a Chávez.
No plano nacional, a atuação política de Lula deve desacelerar. Até a descoberta do tumor, ele estava próximo das articulações para as eleições municipais de 2012, viajava e conversava com muita gente. Não será possível manter o ritmo. Os rituais e o simbolismo que tornam a política uma atividade muito particular, porém, devem manter Lula no centro das mais importantes decisões. “Não será o câncer que vai tirar Lula do jogo político”, diz o líder do PT no Senado, Humberto Costa (PE). Com enorme influência sobre o partido e o governo, Lula deverá ser ouvido, sobretudo, nas discussões sobre alianças para 2012. Assessores mais próximos, como o ex-ministro Luiz Dulci, podem assumir um papel mais ativo nos contatos com aliados. Lula mantém conversas frequentes com a presidente Dilma. Isso, segundo políticos e assessores da presidente, não deve mudar. “Lula vai continuar sendo uma força de enorme peso político”, afirma o cientista político Amaury de Souza, da consultoria MCM. “Ele pode ficar distanciado de algumas tratativas para a eleição municipal de 2012, mas manterá sempre seu papel político.”

Ninguém acredita que a ausência temporária de Lula abra espaço para decisões contra sua vontade. Uma prova disso aconteceu na semana passada. Mesmo já sob tratamento, Lula viu concluído seu principal plano eleitoral para 2012. Na quinta-feira, após um pedido de Dilma, a senadora petista Marta Suplicy desistiu de disputar as prévias que definirão o candidato do partido a prefeito de São Paulo. Favorita nas pesquisas, Marta insistia na candidatura, apesar do trabalho de Lula em favor do ministro da Educação, Fernando Haddad. Era a mais sensível de todas as articulações recentes do ex-presidente. Terminou com vitória de Lula.

Lula01 (Foto: reprodução)

Lula02 (Foto: reprodução)

Lula03 (Foto: reprodução)

Lula04 (Foto: Gráfico: Marco Vergotti e Rodrigo Fortes)(Gráfico: Marco Vergotti e Rodrigo Fortes)

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