Mais que Ficha Limpa

Artigo original publicado no Diário do Nordeste.

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Como orquestra que combina músicos virtuosos e desafinados, capazes de grandiosas e medíocres apresentações, o campo político-jurídico brasileiro surpreende pela propositura de leis magníficas e a interpretação e aplicação excepcionais, mas às vezes desastrosas. A Lei da Ficha Limpa, na contramão, é um caso de prestimosa virtude do Judiciário e dos órgãos de controle dos recursos públicos. No Ceará, o serviço público exercido como se deve, por servidores do Ministério Público, Tribunal Regional Eleitoral e Tribunal de Contas dos Municípios, nos deixou estupefatos com o impedimento de candidaturas de políticos populares e tradicionais, da situação e oposição. Exemplo a ser seguido: pois, se todos compartilham uma cultura semelhante, como se justifica os pífios resultados obtidos em alguns Estados?

Os vários escândalos aparecem como irrupção do descalabro com a coisa pública, mas o que está ocorrendo é a insurgência de alguns ainda poucos servidores públicos contra a crescente padronização da ação ilícita de seus pares no Poder Executivo, nas Casas Legislativas e no Judiciário. Vive-se, atualmente, uma tensão entre virtude e amoralidade que, se tenazmente enfrentada pelos desejosos na erradicação da corrupção, tráfico de influência e outras mazelas, primeiro, escandalizará com o aumento dos casos tornados públicos, posteriormente, moralizará o sistema político-jurídico.

Esse movimento é fundamental para se alcançar a harmonia e pacificação social, porque coíbe o enriquecimento ilícito construído no desvio de recursos destinados a obras e serviços públicos que, direta ou indiretamente, incidem positivamente sobre os mais pobres. Entretanto, o êxito já obtido nessa empreitada pode se esvair e os benefícios econômicos e sociais ainda por vir podem não ocorrer. A consolidação das benesses da Lei da Ficha Limpa só advirá com uma profunda transformação do poder legislativo, onde se origina as regras ordenadoras da convivência social. A Casa Legislativa com indivíduos que não ocupam a tribuna, não debatem seriamente os problemas que afligem os cidadãos, não apresentam projetos ou só agem em causa própria, torna-se um ambiente propício a germinação de interesses escusos, que se ramificam por todo o tecido social.

É difícil distinguir um candidato de qualidade em meio a um oceano de candidaturas que postulam um emprego bem remunerado e de prestígio. A Ficha Lima nos tranqüiliza quanto à possibilidade de não confiar nossa representação política a pessoas comprovadamente desonestas, mas não impede de escolhermos um incompetente ou alguém de caráter duvidoso, predisposto a conquistar o poder para praticar improbidades. Para isso é preciso também eleitores virtuosos, que reconheçam o Legislativo como instituição fundamental e que atente para as ações patrimonialistas daqueles que buscam assenhorear-se do poder e transmiti-lo aos descendentes.

Devemos olhar minuciosamente à direita, à esquerda e ao centro, para não sermos seduzidos pelos oportunistas. É necessário analisar rigorosamente se aqueles que têm visibilidade midiática ou é pai, mãe, esposo(a), filho(a), neto(a) de alguém que possui uma sólida carreira política possuem vocação ou estão a procura de um "emprego". É certo que o ambiente social favorece o aprendizado, de sorte que médicos competentes podem gerar outros mais competentes ainda; porém, não há aí uma determinação absoluta: bons políticos podem gerar maus políticos e vice-versa.

Gerardo Clésio Maia Arruda – Doutor em Sociologia e professor da Unifor

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