Juntos e Misturados, o Brasil “do asfalto” encontra “o outro lado” nas favelas do Rio

As UPPs ainda são uma doce promessa. Uma onda de esperança em um mar de más notícias e atitudes lamentáveis que tem nos cercado.

O Rio está experimentando um momento único que gera situações como as abaixo. Demos que acompanhar de perto para que as UPPS não virem mais uma boa ideia brasileira abandonada ou sucateada pelo tempo.

Texto original para assinantes no site da Revista Época.

Juntos e misturados

A pacificação das favelas leva moradores “do asfalto” e turistas a conhecer melhor o “outro lado” do Rio

Maurício Meireles

Guilhermo Giansanti

VISTA PREMIADA
Frequentadores da casa de shows The Maze, no alto da Favela Tavares Bastos, com o Cristo Redentor ao fundo. A música, ali, é jazz

Ainda é um reencontro tímido. Mas nos últimos meses os dois lados do Rio de Janeiro começam a produzir uma nova cara da cidade. O slogan poderia ser a coloquialíssima expressão “Tamo junto e misturado” – originária dos morros e adotada no asfalto –, mas de mão dupla: tanto morro acima quanto morro abaixo. O medo que criou a divisão entre asfalto e morro começa a ser diluído por novos sentimentos, como curiosidade, descontração e respeito.

Na Favela Tavares Bastos, no Catete, Zona Sul da cidade, acontecem shows de jazz em uma pousada que recebe turistas estrangeiros interessados em se hospedar no alto do morro. O nome do lugar, The Maze, que significa labirinto na tradução do inglês, dá uma ideia de como é chegar lá pela primeira vez. O caminho é formado por corredores estreitos, com as casas coladas umas nas outras, algumas de arquitetura colonial, dos tempos em que a favela era uma fazenda de café. Apesar da confusão, pessoas de todas as idades e bairros se encontram ali na primeira sexta-feira de cada mês, a partir das 21 horas. “É muito legal ver essa diversidade de pessoas e classes sociais”, diz Laura Machado, gerontóloga, de 54 anos. “É ótimo poder subir aqui. Parece um clube de jazz daqueles de Nova York.”

A Maze atrai gente como Laura por estar em uma área segura, com um quartel do Bope, o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar. Mas o que deixa os clientes com vontade de voltar é a hospitalidade do anfitrião, Bob Nadkarni, um jornalista inglês de 67 anos que escolheu o morro para se aposentar. Ele chegou ao Brasil por acidente, quando o navio em que ia para o Equador precisou atracar no Rio. Bob se apaixonou por uma mulher na Tavares Bastos e resolveu se mudar para lá, onde construiu um ateliê de pintura. Hoje, a trilha sonora do morro, que já foi a de rajadas de balas, passou a incluir improvisos típicos dos clubes de jazz. “Não sinto saudade de Londres”, diz Nadkarni. “Adoro jazz e comida indiana. Já tinha aprendido a cozinhar. Agora tenho o jazz, ao vivo, dentro de casa.”

Os turistas já sobem alguns morros sozinhos sem
ser hostilizados por traficantes ou milicianos armados

Junto com iniciativas assim, a cidade percebe que não é preciso levar a cultura para a favela. “É preciso admitir que a cultura cria pontes culturais que unem a cidade, por mais que ela pareça dividida”, diz Écio Salles, secretário de Cultura de Nova Iguaçu, cidade da Baixada Fluminense. O fato de o jazz ser uma música estrangeira não muda isso. O que importa é o fato de o show ser organizado pelas pessoas da própria comunidade. Para Écio, isso é bom porque ajuda a acabar com preconceitos, como o de que quem mora na favela quer sair dali. Basta conversar cinco minutos com os moradores de favelas como Babilônia, Chapéu Mangueira ou Rocinha para ouvir expressões afetuosas como “minha favela”.

Outro preconceito é encarar a favela como um lugar obrigatoriamente violento. “Quando fui a Vigário Geral para escrever o livro Cidade partida (sobre a chacina), achei que ia encontrar pessoas violentas, com vontade de se vingar. Mas as pessoas querem paz. Claro que elas não gostam de não ter saneamento e outros problemas, mas não querem se mudar de lá”, afirma Zuenir Ventura.

A ocupação das favelas pelas Unidades de Polícias Pacificadoras (UPPs) tirou parte do medo que as pessoas do asfalto tinham de subir o morro. Em Ipanema, moradores e turistas já podem ver cartões-postais famosos, como a Pedra da Gávea, por um ângulo diferente. O Mirante da Paz, no alto do Morro do Cantagalo, Zona Sul da cidade, virou ponto turístico graças ao elevador que começa na estação de metrô no pé da favela. São 65 metros de altura. “Isso aqui vai virar um cartão-postal. As pessoas já sobem sem medo, sozinhas. Ajudou a diminuir o preconceito contra a favela, que antes era vista como um lugar de bandidos”, afirma Luiz Bezerra do Nascimento, presidente da associação de moradores. Outro programa que já virou moda entre a classe média da cidade é o pagode com feijoada nos morros da Babilônia e Chapéu Mangueira. No último domingo de cada mês, pessoas do morro e do asfalto se reúnem para dançar e comer na quadra na fronteira entre as duas favelas. Se quem for conferir a feijoada subir mais um pouco a ladeira e pedir informação, vai encontrar uma trilha ecológica que atravessa 200 mil mudas da Mata Atlântica plantadas pelos moradores numa área de cerca de 50 hectares. O passeio ainda não é tão popular quanto o “favela tour” da Rocinha, que sobe o morro em jipes de safári, a US$ 70 por pessoa. Na Babilônia, o passeio custa R$ 40 e dá direito a explicações de guias da comunidade que falam francês, inglês e espanhol.

Guilhermo Giansanti

NO LUGAR DA CHACINA
Músicos tocam em frente ao Centro Cultural Waly Salomão, em Vigário Geral, erguido pela ONG AfroReggae

Uma proposta bem mais ambiciosa, e que também atrai gente de fora da comunidade, é a do Centro Cultural Waly Salomão (CCWS), criado pelo grupo AfroReggae. O prédio de quatro andares fica em Vigário Geral, onde, há 17 anos, cerca de 30 policiais militares invadiram a favela numa ação que deixou 21 pessoas mortas. “A chacina foi um estímulo para os jovens aderirem ao tráfico. Acreditava-se que a polícia era ruim e tinha de ser combatida”, diz Vítor Onofre, de 28 anos, um dos coordenadores do AfroReggae e sobrevivente do massacre de 1993. “A cultura é o grande meio para mudar a sociedade, porque faz pessoas diferentes dividir espaços que não dividiriam de outra forma”, diz José Júnior, coordenador executivo da ONG, a quem o poeta Waly Salomão chamava de “o mestre das conexões”.

O centro demorou sete anos para ficar pronto. Algumas das empreiteiras contratadas abandonaram as obras com medo da violência. “Agora o centro cultural criou um corredor de liberdade. Os traficantes já entenderam que a rotina deles mudou, e o movimento aqui em Vigário Geral vai crescer”, afirma Fay Antunes, coordenadora cultural da ONG. Ela mesma mora em Copacabana, mas tem o escritório na favela. Quando Zuenir Ventura escreveu Cidade partida, pessoas armadas com fuzis guardavam a entrada da favela. A reportagem de ÉPOCA, que esteve lá a convite do AfroReggae, não viu ninguém armado. Além das aulas de instrumentos musicais, dança, teatro e circo, o CCWS vai realizar em um sábado de cada mês um evento de música para atrair também jovens do asfalto. Mas é seguro para alguém de fora chegar para visitar o centro cultural? Fay garante que sim: “Quem quiser vir aqui, estacionar no posto de gasolina ali na frente e entrar pode ficar tranquilo. Não queremos nos focar só em um público porque a ideia não é criar um gueto. Copacabana vai vir para Vigário Geral, pode escrever aí”. Quem for vai ver na mesma rua a economia florescendo ao redor do Waly Salomão, com vários bares que abriram para atender os visitantes. Sônia, que abriu um logo em frente, recebe os visitantes de fora cheia de orgulho: “E aí, tá gostando da minha favela?”.

As opções incluem safári de jipe, feijoada e
até uma trilha ecológica no Morro da Babilônia

Não é só o contato entre morro e asfalto – o que, de certa forma, o samba já fazia desde a primeira metade do século passado – que une o Rio de Janeiro. A cultura produzida na favela ajuda a levar às comunidades o que a Organização das Nações Unidas chama de “direito à cidade”, ou seja, de ter acesso aos benefícios de morar em uma metrópole, como emprego e serviços. O AfroReggae, além de tudo, é um bom negócio. A organização não governamental oferece emprego para jovens que poderiam ser cooptados pelo tráfico. É graças à invasão cultural do centro pela periferia que as empresas hoje veem nas favelas não pessoas precisando de assistência, mas um mercado consumidor. O Complexo do Alemão, um conjunto de 13 favelas com 65 mil pessoas na Zona Norte da cidade, há um mês ganhou uma agência bancária.

Como parte da identidade do Rio de Janeiro e do Brasil, a favela já inspirou artistas como Hélio Oiticica, que em 1965 tentou levar para uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro uma ala de passistas da Mangueira. Os favelados foram proibidos de entrar. Hoje, é o asfalto que começa a buscar opções de arte e lazer no morro, que, assim, prova quanto é pop. Ao subir as ladeiras das favelas para cantar, dançar, comer e se divertir com os moradores locais, o pessoal do asfalto e os turistas estão aos poucos abolindo a fronteira que a violência criou.

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